terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

A Música da República I: Sócrates Desce ao Inferno

por Eva Brann 
link para o original: 
https://theimaginativeconservative.org/2016/03/socrates-descent-into-hell.html 

Este é o primeiro ensaio da série. Os outros ensaios podem ser encontrados aqui: II, III, IV, V, VI, VII, VIII, IX, X. (links serão adicionados conforme forem sendo traduzidos). Recomendamos o trabalho da Eva Brann “A Música da República: Ensaios sobre os diálogos de Sócrates e os Escritos de Platão”, que apareceu originalmente na revista “St. John's Review” (Volume 39, Números 1 e 2 de 1989 e 1990).

Sócrates Desce ao Inferno 



“Sócrates começa a maioria das suas investigações não a partir do centro, mas sim da periferia..."
 
No centro do segundo maior diálogo do Platão, a “Constituição”, a “Politeia” (πολιτεία), segundo o título original em grego, porém normalmente conhecida como a “República”, está um ergon (ἔργον),um “grande feito”, como os dos heróis. Porém, para encontrarmos este centro será necessário estabelecermos a periferia do livro. 



A “República” foi composta segundo um plano de círculos concêntricos; os temas ao longo do diâmetro reaparecem na ordem reversa como se estivem sendo refletidos através de um eixo central. A periferia mais extrema, foi arranjada como um mito. Num largo anel interior, estão as tentativas de construção e as suas respectivas destruições, das sucessivas formas de uma nova cidade, utilizando apenas o “discurso”, o logos (λόγος). Os temas deste anel, por exemplo o ataque aos poetas, também são simétricos em relação ao centro. Este centro, claramente definido como tal pelo plano do diálogo, apresenta a fundação de uma cidade como um “grande feito”, um ergon (ἔργον). A “República”, como será demonstrado, exemplifica a citação acima que Søren Kierkegaard expressou na sua dissertação “O Conceito da Ironia, com Constantes Referências ao Sócrates” (Londres 1966, página 70). 

B.1 


Qualquer um que tenha usado uma edição anotada da “República” [1] terá lido a curiosa anedota contada por Diógenes Laércio e Dionísio de Halicarnasso sobre a origem da obra. Dionísio diz que diversas histórias contam como Platão era extremamente cuidado com seus diálogos, inclusive existindo um manuscrito, encontrado na época da morte de Platão, que conteria “a República inicia com “Ontem, então, desci a Peiraeus com Glaucon, filho de Ariston” junto de algumas transposições contendo pequenas variações desta frase. 

Diógenes Laércio  


Dionísio de Halicarnasso  
 

Cidade de Halicarnasso  


Podemos então inferir que algum significado especial é transmitido por este início. Na verdade, existe algo realmente curioso neste estilo: Atenienses, tanto antigamente quanto atualmente, quando visitam esta cidade-porto normalmente dizem que vão “ao Piraeus” e não “a Piraeus” (por exemplo, Tuchídides VIII, 02, 9) [2]. Na própria “República” é como Céphalus usa a expressão em (328c6), e como ele mesmo vivia lá naquela época, podemos imaginar que ele sabia o que estava fazendo. Então, a frase é para ser ouvida de maneira especial. Também é verdade que os próprios Atenienses ouviam "Piraeus" com um certo significado a mais; a Peraia (περαία) significava o “além-terra, o “além do horizonte”, algumas vezes falamos do "além-mar" por causa das navegações, alguma terra distante, em algum momento especificamente a terra que estava além do rio que separava a península Peirática da região de Itaca. [3] 




Portanto, vamos tentar ler “Ontem, desci a Peiraeus com Glaucon” como “Ontem, desci à terra além do rio, junto ao Glaucon, filho de Ariston.”, “para oferecer minhas devoções”, Platão continua, “para a deusa”. Esta deusa, somos informados no fim do primeiro livro (todas as subpartes do 354) é a deus Bendis, da região de Trácia, uma estrangeira aos Gregos identificada com o Hécate [4], a divindade guardiã do submundo. 



Sócrates está no seu caminho de volta para Atenas quando Polemarchus, com seus companheiros, o detêm e pressionam Sócrates para acompanhá-los até a sua casa, onde encontram Céfalos, o rico pai de Polemarchus, sentado gloriosamente. Ele está naquele limite para o Hades, que é a velha idade (328e6) [5]. Como ele mesmo diz, pouco lhe resta do seu corpo. Ele é, como seu próprio nome o apresenta, apenas uma “cabeça”, aliás como Sócrates astutamente aponta, ele está sentado no apoio para cabeça, numa almofada, numa proskephalaion (προσκεφάλαιον) (328c1). Suas riquezas, suas ploutos (πλοῦτο) (331b7), Sócrates suspeita, são o seu conforto. Uma macabra luz pode foi jogada sobre ele por fontes antigas que dizem que ele estava, na verdade, morto há mais de 30 anos na época do diálogo teria acontecido, por volta de 411 e 405 AC; seu filho, Polemarchus, teve apenas mais alguns anos de vida antes de ser morto pelas mãos dos Trinta Tiranos. “Estamos na cidade das sombras”, na casa de Plouton. 

Sócrates aproveita para referir-se a esta situação por todo o diálogo, por exemplo, quando ele declara ao Thrasymachus e aos presentes, usando uma linguagem solenemente ambígua, que ele não vai cessar esforços até que eles estejam preparados para “para suportar aquela outra vida, a qual nascerão novamente e encontrarão discussões como esta” (498d3-4). As próprias figuras dos jovens guardiões da cidade que Sócrates constrói é um lembrete deste arranjo: eles devem ser como cães de guarda, que, como verdadeiros amantes da sabedoria, determinam seus amigos e seus inimigos por um teste de conhecimento ou de ignorância deles mesmo – eles conhecem a arte da lealdade. O perverso padrão destes cães é o cão de guarda de Hesíodo que guarda o Hades, que possuem a “arte do mal” (Theogony 770) de bajular estrangeiros e devorar os de casa que desejam escapar. Os guardiões são domesticados e convertidos nos cães de guarda do inferno. 

B.2 


Mas, afinal de contas, qual é o objetivo de Sócrates nesta descida? Para detectar o mito que provê o venerável cenário para a descida de Sócrates é necessário, por um breve momento, divagar para bem distante. 

Em certas ocasiões, Sócrates usa um xingo que foi evidentemente considerado na antiguidade de ser bem próprio dele: “Pelo cão!”, e em Gorgias (482b5) ainda mais explícito: “Pelo cão, o deus Egípcio” [7]. Sócrates usa este xingo duas vezes na "República" e, como sempre, em passagens que dizem respeito com a parte filosófica do discurso humano e de política (399e5, 592a7; Cratylus 411b3). Quem é este cão-deus Egípcio que Sócrates proclama? Plutarco (On Isis and Osiris 368e-f) o descreve desta maneira: ele nasceu de uma mãe do submundo, porém foi criado por uma deusa dos céus e por isso pertence a ambos os mundos. Ele pode enxergar tanto na luz como no escuro e por isso possui a função de mediar entre o alto e o baixo mundo. Seu nome egípcio é Anubis, mas para os Gregos ele é Hermes, o intérprete, o instrutor, o líder das almas, um psicagogo (Phaedrus 271c10) que conduz as almas dos mortos e guia aqueles que devem descer até o Hades enquanto vivos (Diogenes Laércio VIII, 31). Ele é também quem trouxe sabedoria política para os homens (Protágoras 322c2). Em particular, Hermes é conhecido como o guia do herói Heracles na sua famosa descida ao Hades (Odisséia XI, 626) e é assim que ele é comumente representado em vasos. 

Héracles (Hércules) foi um herói versátil [8]. Ele é o campeão em fundar cidades, que pode ser comprovado pela quantidade de cidades chamadas Heracléia. Ele é o grande civilizador, “usando música” (Plutarco, Sobre a Música XL, 4), coisa que ele era proficiente. Ele também é o guardião da educação dos meninos, o guardião da palaestra (παλαίστρα), a escola de luta da Grécia antiga, e os meninos dedicavam seus cabelos a Héracles. Ele ensina as letras aos homens; Plutarco, de gozação o chama de “o maior dos dialéticos” (The E at Delphi, 387d). Ele é partidário da virtude, tendo, segundo história contado por Sócrates (Xenófanes, Memorabilia II, I, 21; Plato, Simpósio 177b), escolhido a virtude ao invés do vício como mestra, por causa da felicidade, da eudamonia (εὐδαιμονία) que esta lhe prometeu. Porém a verdadeira fama de Héracles vem dos seus feitos, injustamente impostos pelo Rei Eurystheus. Isto inclui ter matado a Hydra, com as suas cabeças de cobra, e o Leão de Neman; porém dos seus feitos, o maior é a sua descida, a sua katabasis (κατάβασις) ao Hades. Sua tarefa lá foi trazer à luz do dia a besta Cerberus. Ele recebe permissão de Hades, porém com a restrição de fazer isto de maneira persuasiva, sem violência. No caminho, diz a história, ele esquece da sua missão e permite que as sombras o detivessem em longas conversas. Antes de retornar, ele completa um pequeno trabalho, um parergon (?), libertando Theseus, seu imitador e o fundador e legislador de Atenas que estava acorrentado no Hades. Entretanto, ele falhou em libertar Pirithous, companheiro de Theseu. Enquanto no Hades, Héracles é quase levado pelas águas do rio do submundo.

Este herói é, de certa maneira, perfeito para Sócrates, e Sócrates em pessoa faz esta comparação. Na “Apologia”, falando da sua busca pelo homem sábio, ele diz à corte: “Pelo cão, homens de Atenas – pois devo confidenciar-lhes... aqueles que possuem as maiores reputações, para mim são os mais deficientes... então deixe me mostrar-lhes com perambulei como se estivesse fazendo certos trabalhos.” (22a1). Todo Ateniense deveria, claro, reconhecer esta alusão; a maioria dos tradutores também colocam esta alusão em seus textos. No Crátilo, Sócrates diz a Hermogenes: “Estás levantando uma classe de nomes que não pode ser desprezada; porém, já que coloquei o meu leão-capacete não posso me acovardar. Pelo cão, estou tendo uma inspiração.” (411a-b). Outra vez, num interlúdio no Phaedo, Sócrates explicitamente consente em tomar a o papel de Héracles numa batalha pelo argumento, com Phaedo tomando o papel de Iolaus, amigo de Héracles (89b-c). Conforme vão conversando, Sócrates brinca com o cabelo de Phaedo: como Héracles, seu cabelo é seu por direito, como amigo de Iolau, a intimidade é seu direito também.

Existem sinais e indicações que Sócrates faz o mesmo papel na "República". Ele “desce” para a terra do além; é pego a força numa conversa na casa de Plouton; e, como o próprio espectro de Héracles, que Odisseu encontra na sua visita às sombras (o verdadeiro Héracles está entre os deuses) que conta a história da sua descia (Odisséia XI, 601); Sócrates luta contra o sofista Thrasymachus, quem vem a ele “como uma besta” (336b5) e que contra quem muito em breve duelaria como quem “tosquia um leão” (341c1). Um pouco antes, Thrasymachus, rindo como um sardonion, “rindo como um condenado”, como diria um escoliasta – dirigiu à Sócrates: “Oh Héracles! Este é o velho modo dissimulado de Sócrates!” (337a4). Isto é, claro, nada além de uma exclamação de surpresa, porém soa muito como o rugir do Leão de Nemam reconhecendo Héracles; já no fim do primeiro livro da "República", o leão está domesticado. E num determinado ponto, Sócrates se refere ao modo errado de matar a Hydra, insinuando que ele conhece a melhor maneira (426e8). 

B.3 e B.4  


Porém o maior dos trabalhos começa após este prelúdio (357a2) do primeiro livro [10]. Nos nove livros que o seguem, o assunto principal será o velho tema Heraclatiano, a relação entre virtude e felicidade, que é sempre lembrada, até mesmo no meio de pontos muito maiores que são restringidos ao seu favor (445a, 580b, 608c); esta relação deve ser examinada, por exemplo, no homem portador do Anel de Gyges (359d1), e, como Sócrates adiciona, no portador do Capacete de Hades (612b5), um capacete mágico que priva o seu portador, ainda em vida, de todas as aparências e reputações, e o coloca em contato direto com as almas, sem nenhuma veste, do Hades (Gorgias 523c). No curso deste argumento, Sócrates lhes ensinará um pouco de literatura, usando os grandes textos da cidade para ensinar-lhes as pequenas coisas da alma (368d, 402a7). Ele irá também, como veremos, fundar a sua própria cidade. Pelos poderes da psicogeria da sua música retórica (Phaedrus 261a, Aristóphanes, Birds 1555 [11]) ele irá libertar o seu Theseus, irrepreensivelmente, injustamente, preso ao Hades (391c9). Porém, sua empreitada trará a vida um monstro de três cabeças, assim como Cerberus, algo que aparente cobras na sua parte inferior (590bl). De modo que quando o argumento é levado a uma imensa profundidade sobre a vida do tirano, Sócrates então relembra, mais uma vez, “aquelas primeiras palavras, pelas quais nós estamos aqui” (588b2), ou seja, a afirmação de Thrasymacus que a injustiça com a aparência de justiça é vantajosa. Para concluir o caso contra ele, eles “modelam uma imagem da alma com palavras” (588b10). Isto será, Sócrates diz, uma criatura como aquelas encontradas nos mitos, uma Quimera, ou uma Scylla, ou um Cerberus, cuja natureza é ter “várias formas, todas unidas em uma” (588c4) sob uma forma externa com silhueta humana. Assim que esta alma seja arrastada de volta para cima e totalmente limpa dos seus exageros (611), “nós teremos”, Sócrates diz, “nos livrado desta discussão” (612a8). Héracles resgatou para o Hades o seu monstro, resgate que significa que a exposição da natureza humana é a condição básica para o seu resgate. E ele, incidentalmente, trouxe de volta o jovem Theseus, nome que conota nomothesis, criador de leis, que no caso da "República" é o irmão de Platão, Glaucon.

Tendo evitado de encenar um mito, Sócrates encerra o diálogo, então, contando um, uma recordação de um dos “mitos que são contados sobre aqueles que estão no Hades”. São estes mesmos mitos que atormentam Céfalus pois ele está muito próximo destas coisas (330d7). Neste mito, Er, o Pamfliaco (Παμφυλία ), que significa “homem da região das várias tribos” (614b4), é encarregado pelas almas para trazer de volta aos vivos a longa história da milenar jornada da ascensão ou da queda que será a recompensa ou a punição. Ele na verdade conta apenas o fim desta jornada, já que, como Sócrates significativamente observa para Glaucon, que neste ponto já escutou toda a conversa ao longo de todo o dia e da noite, a história em si “tomaria um longo tempo se fosse contada por completo” (615a5). Sócrates termina o diálogo urgindo Glaucon para aguentar firma e “escolher o caminho da ascensão” (514b4), para que eles possam completar a jornada dos mil anos da melhor maneira possível “já que nós apenas a começamos” (621d2). Ele deve estar querendo dizer a ascensão do diálogo em si mesmo (573a5, 544b2).

Este é então o arranjo da "República": Hades com a a sua fábula e um herói disposto a descer e hábil o suficiente a voltar; não há cenário melhor, Hades, lá em baixo, pois é dito que lá, a justiça está para ocorrer (330d8, 614c3; Apologia 41a, Gorgias 523, Sófocles, Antigone 451). Em recontando este diálogo, Sócrates está então jogando o “mais nobre dos jogos: contando mitos sobre a justiça e outras coisas” (Phaedrus 276e).

Notas


[1] "Plato’s Republic", B. Jowett e L. Campbell (Oxford 1894) III, p. 4; "The Republic of Plato", J. Adams, 2nd edition (Cambridge 1963). Para uma discussão sobre a organização concêntrica da "República" ver R. Brumbaugh, “A New Interpretation of Plato’s Republic,” Journal of Philosophy 64 (1967), 661 ff.

[2] Liddell e Scott, "Greek Lexicon" (Oxford 1958), ver Peiraieus, 1354b. É, todavia, certamente possível omitir o artigo 439e7. 

[3] Pauly-Wissowa, "Real-Encyclopaedie der klassischen Altertumswissenschaft" (Stuttgart 1937) XIX, i, p. 78. 

[4] Ibid., III, i; ver “Bendis” p. 269. A corrida de tocha mencionada pode ser justificada pelo fato que o Hécate da Thracia tinha também o epíteto "Phosphorus", o portador da luz. De onde vem o nosso "fósforo".

[5] Adams, op. cit. (supra, N. 1) I, p. 5. 

[6] Jowett, op. cit. (supra, N. 1) II, pp. 2, 7, e 79, na 368a3. 

[7] Também Gorgias 461a, 466c; Phaedo 98e; Phaedrus Alguns intérpretes dizem que Sosias está imitando o juramento de Sócrates com o “by the dog”; Aristophanis Comoediae, ed. Dindorf (Oxford 1837) III, 460; cf. Platos Gorgias, ed. Dodds (Oxford 1959) p. 262; também Lucian, Philosophies for Sale 16, que conecta a expressão "cão" de Socrates com Anubis, Sirius, e Cerberus. 

[8] Pauly-Wissowa, Suppl. III, ver “Heracles,” pp. 1007 ff., 1018 ff., 1077 ff.; e também Aristophanes, Frogs 108. 

[9] Ver Phaedrus 267c9, e Aristotle, Rhetoric 1400b19, sobre a notória violência de Thrasymachus. 
[10] Sócrates, tendo completada a refutação de Thrasymachus, começa uma nova e num modo novo: “Sócrates não mais avança com perguntas sobre o caráter do homem ignorante... mas sim daquele que já encontrou o que busca.” "Schleiermacher's Introductions to the Dialogues of Plato", W. Dobson (Cambridge 1836), p. 356. 

[11] Aristophanes na verdade compara Sócrates com Odysseus, outro famoso visitante do Hades. Mas na "Republica" a comparação é, se é que ela existe, feita para desmerecer Odysseus. Para o Mito de Er é oferecida uma melhoria sobre a supostamente entediante e falsa história de Odysseus sobre os “contos de Alcinous,” ou seja, como uma nova Nekyia (614bl, ver scholia; cf. e Kierkegaard, Concept of Irony 130, note). Além disso, sua alma, desiludida pela ambição, escolhe uma vida perfeitamente privada (620c6), o melhor exemplo de vida ante-socrática.

V2019.02.19

sábado, 16 de fevereiro de 2019

Um pensador que você deveria conhecer: Eric Voegelin


por Michael Federici
links para o original: 

O sistema filosófico do Eric Voegelin tentou demolir as barreiras ideológicas na busca da ordem e da recuperação da consciência do transcendente.

O trabalho do Eric Voegelin não é muito bem conhecido fora de um relativamente pequeno grupo de acadêmicos e alguns de seus alunos. Mesmo assim, dentro deste grupo a influência do Voegelin é impressionante. Seus trabalhos têm inspirado uma crescente literatura secundária e a sua filosofia política tem sido aplicada a vários tópicos nos mais diversos campos. Sua filosofia da história e a sua filosofia da consciência têm influenciado o trabalho de diversos pensadores, todos merecedores de atenção, entre eles: Gerhart Niemeyer, Flannery O’Connor, David Walsh, Marion Montgomery, Russell Kirk, James L. Wiser, Ellis Sandoz, Dante Germino e Jürgen Gebhardt. Outras evidências da influência do Voegelin são: a criação, em 1987, do Instituto Eric Voegelin na Universidade do Estado da Lousiana nos Estado Unidos; e o estabelecimento do Centro de Estudos sobre Eric Voegelin no Departamento de Religiões e Teologia da Universidade de Manchester. Porém, enquanto é verdade que o trabalho do Voegelin influenciou vários acadêmicos do primeiro escalão, suas teorias políticas ainda não encontraram seus caminhos para a cultura mais ampla.

Confrontado com uma extensa e profunda degradação cultural, social e moral, Voegelin teorizou que o Ocidente perdeu sua consciência de certas experiências históricas vitais para a formulação da ordem política, social e existencial. Usando as palavras do próprio Voegelin, experiências históricas e seus correspondentes símbolos nas linguagens iluminam a verdade da realidade. Linguagem foi necessária tanto para articular as “experiências da ordem” como para preservá-las ao longo do tempo, já que estas experiências são raras. A verdade da existência incorporada na experiência foi uma força ordenadora pois coloca em consonância a alma aberta e o Agathon (o Bem). E uma ordem social e política justa, assim como a alma justa, é dependente deste tipo de consonância. Infelizmente, a experiência histórica não pode ter um efeito ordenador se os símbolos da linguagem que a preservam perdem o seu significado original, como ocorre quando eles são transformados e obscurecidos pelos movimentos ideológicos. Estes movimentos agem de modo a separar os símbolos das linguagens das suas experiências geradoras.

Para reconquistar a consciência destas experiências geradoras – e ainda por cima recuperar a ordem social, política e existencial – o filósofo precisa “reativar a experiência geradora na sua psiquê” e “recapturar a verdade da realidade que vive nestes símbolos”. Em particular, os símbolos das linguagens contido nos mitos, nas revelações, na história e especialmente na filosofia devem ser restaurados para a luminosidade – ou seja, devem ser reatados com as experiências históricas que eles tentam transmitir – antes que discussões racionais das questões da ordem possam ocorrer. Esta recuperação do sentido necessita que o filósofo recrie a experiência imaginativamente num ato de meditação e que crie os “símbolos reflexivos” que articulem a verdade dos “símbolos originais”. Esta compreensão da crise moderna como a perda da consciência dos símbolos e da experiência ajuda a explicar o porquê do Voegelin voltar-se para a filosofia da consciência nos seus últimos trabalhos.

O uso contemporâneo da palavra “filosofia” ilustra as consequências de desconectar os símbolos da linguagem das suas experiências geradoras. “Filosofia” acabou, no dia a dia, com o mesmo significado que “ideologia” ou “sistema de valor”. Porém clareza filosófica depende das distinções, por um lado entre filosofia e conhecimento (episteme), e por outro entre ideologia e opinião (doxa). Por exemplo, o uso contemporâneo de “filosofia” e “ideologia” como sinônimos implica que as filosofias de Platão e Aristóteles não devem ser tidas como afirmações verdadeiras sobre a realidade; e sim como duas ideologias, duas entre tantas outras que um indivíduo é livre para escolher baseado nas suas preferências pessoais ou pelos seus interesses políticos. As implicações políticas do símbolo “filosofia” se tornar opaco são evidentes na emersão dos “formadores de opinião”, dos “marqueteiros”, um tipo que Platão classificava como filodóxicos, amantes das aparências e das opiniões. As intencionais distorções da realidade destes corroem a habilidade dos indivíduos de ver a vida como ela é. Num ambiente como este, política não é uma busca pela verdade ou pela fundação da ordem baseada nesta verdade. Política, neste ambiente, não passa de um jogo de poder jogado pelos filodóxicos que vendem as suas opiniões com uma compreensão Sofística que o quê interessa é apenas o poder e não a verdade. Este contexto torna muito difícil o estabelecimento da existência da verdade (aletheia) sobre a realidade, particularmente da realidade transcendente. Na verdade, referências para uma realidade objetiva são usualmente encaradas com um profundo ceticismo existencial e intelectual, se não com total e completa intolerância. Voegelin chamava esta reação ao discernimento filosófico de “fechamento narcisístico”. Ele acreditava que é uma característica do homem moderno esta alienação e distanciamento espiritual. Discussões profundas não podem acontecer sob estas circunstâncias por que as precondições para o debate racional não existem.

Como importantes símbolos das linguagens perderam seus significados, Voegelin achou que além de ser necessário restaurar os significados originais dos antigos símbolos, também é necessário criar outros para explicar as estas questões filosóficas. Exemplos de novos símbolos dados por Voegelin são: a “logofobia”, medo e ódio da filosofia; “especulação pseudológica”, especulações não-teoréticas, aquelas que são fechadas para aspectos da realidade por conta das suas rígidas preconcepções ideológicas que vemos em pensadores “espiritualmente doentes” como Karl Marx). Voegelin criou estes termos para explicar a depravação espiritual que gera tantos sistemas ideológicos. A criação de novos termos e conceitos foi uma parte necessária para criar e restaurar uma nova ciência da política, a ciência da filosofia política clássica, que foi capaz de efetivamente analisar e diagnosticar a crise moderna. A combinação de termos filosóficos não usuais e de alguns neologismos abriu espaço para acusações que Voegelin não passa de um pedante e de um esotérico. Na verdade ele não foi nenhum dos dois. Mediante um estudo cuidadoso da teoria política do Voegelin, se torna claro que o uso de termos filosóficos não usuais e dos neologismos foi justificado pela natureza do contexto da sua filosofia política. Penetrar no significado da experiência e na verdade da realidade numa era de ideologias deformantes necessitou de uma reativação dos significados dos símbolos que articulavam a experiência da realidade e necessitou da criação de novos símbolos para descrever os complexos problemas filosóficos. Voegelin não estava sendo intelectualmente vaidoso na sua terminologia; ele estava tentando genuinamente descrever a realidade e restaurar a ciência política.

Diagnosticar a crise Ocidental necessitou a criação de um sistema filosófico que pudesse identificar a origem da desordem e penetrar nas suas causas espirituais. Este esforço deu à luz a “nova” ciência da Política do Voegelin. A sua abordagem foi nova no sentido que foi uma quebra radical com as metodologias baseadas nas ideologias dominantes da sua época. Porém ela é bem antiga no sentido que a concepção de Voegelin de ciência retorna as abordagens clássicas de Platão e Aristóteles. Esta abordagem reconstituída para análise científica foi necessária por causa do estado existente da academia no século XX. Ideologias como o positivismo colocam demandas metodológicas nos acadêmicos que tornam impossíveis de acuradamente diagnosticarem as doenças do mundo Ocidental. Estas ideologias são inadequadas pois elas são filosoficamente fechadas para o escopo completo da realidade – ou seja, seus métodos e pressuposições proíbem análises teóricas das questões a respeito da realidade transcendente. Ideologias são obstáculos para a análise acadêmica e científica da crise moderna e são, na verdade, parte da crise.

Redespertar a consciência Ocidental para a experiência da ordem, que é a própria substância da civilização, demanda uma busca aberta e completa para a fonte divina da ordem. Este processo de lembrança (anamnesis) sugere que a verdade da experiência da realidade não foi perdida para sempre, mas que jaz dormente na mente Ocidental, esperando para ser despertada imaginativamente por uma alma espiritualmente sensível. O sistema filosófico do Voegelin tentou derrubar estas barreiras ideológicas para permitir a busca da ordem e da recuperação da consciência transcendental, que é o porquê ele dedicou uma porção significativa da sua vida acadêmica aos problemas de ideologia e metodologia. É por isso também que ele rejeitou doutrinas da ordem (em oposição a filosofia da ordem) e o porquê dedicou tanto esforço para uma busca sincera (zetema). A filosofia política do Voegelin iluminou o caminho; ela incorporou no espírito como a busca pela fonte transcendente da ordem deve ser conduzida; ela não criou um sistema ideológico, nem um programa político, nem uma doutrina social. O seu objetivo primário não foi recuperar uma informação histórica, mas sim recuperar uma compreensão do processo do qual o homem se torna consciente da realidade divina-transcendental.