sábado, 12 de outubro de 2019

Entrevista com Prof. René Girard - Teoria do Desejo Mimético




00:01

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00:14

René Girard nasceu em 1923, em Avignon, e seus livros foram traduzidos para mais de vinte idiomas, aí incluídos "O Bode Expiatório" e "Coisas Ocultas desde a Fundação do Mundo".

Seu livro mais recente, Rematar Clausewitz - Além da Guerra, será publicado nos EUA em 2010.

Em 2005, o Professor Girard recebeu a mais alta honraria em seu país, quando foi eleito para integrar a Academia Francesa.

Uma das fontes do pensamento de René Girard foi a leitura rigorosa do livro "O Ramo de Ouro", publicado em 1890. Segundo o autor, James Frazer, os mitos em todo o mundo antigo continham um aspecto cíclico: o sacrifício de um rei que morre e ressuscita.

O Cristianismo, sugere Frazer, não passa de mais um desses mitos - uma questão à qual voltaremos.

01:15

René Girard, bienvenue.

01:18

René Girard: É um prazer estar aqui.

01:19

Peter Robinson: Primeira Parte. Insights. Desejo Mimético.

Começo citando Gil Bailie, um de seus intérpretes: "O desejo, diferentemente do apetite animal, é sempre despertado pelo desejo do outro."

Explique!

01:36

René Girard: Se, para criarmos o desejo... Porque o desejo não é algo inato, também não é animal. Será que é humano? Não sabemos. Às vezes é humano, outras vezes parece muito desumano. Mas como nasce o desejo?

Eu penso que, normalmente, nasce da contemplação de uma outra pessoa que está desejando algo, e assim, indica que o objeto que ela deseja é desejável.

02:17

Peter Robinson: É claro que qualquer estudando universitário que sonha em se tornar um banqueiro quer voar em seu próprio jatinho e dirigir uma Maserati.

Mas como isso se aplica ao mundo antigo?

02:31

René Girard: Bem, aplica-se do mesmo modo; os objetos é que são diferentes. Mas a estrutura do desejo, a relação triangular do desejo - objeto, modelo e sujeito - é a mesma.

02:56

Peter Robinson: Serpente, Eva e a maçã.

02:59

René Girard: Na teoria mimética do desejo, a serpente é o símbolo e a imagem do mediador. Em outras palavras, é aquele que dirige o sujeito para o mau desejo.

A Igreja conhece bem o que ensina, muito mais do que a maioria de nós pensa. Ela sabe que exemplo é a chave explicativa tanto do mau como do bom comportamento.

E que não é outra coisa senão o que eu chamo de desejo mimético

03:33

Peter Robinson: Por isso a Igreja usa a frase "ocasião de pecado".

03:37

René Girard: Sim.

03:38

Peter Robinson: Mais uma vez cito Gil Bailie: "A natureza imitativa do desejo leva ao conflito".

03:46

René Girard: Leva ao conflito - o que é uma grande obviedade e, ao mesmo tempo, um paradoxo para a maioria das pessoas que percebem isto pela primeira vez. Se você imita o desejo de outra pessoa, é porque admira esta pessoa, que pode até ser o seu melhor amigo.

Porém, a partis do momento em que ambos desejam o mesmo objeto e o objeto desejável existe apenas uma única... cópia... Por isso não deveria dizer "cópia", porque não é uma cópia, mas o original.

04:26

Peter Robinson: Existe somente uma Helena de Troia.

04:30

René Girard: Sim, existe somente uma, e portante eles têm que lutar. Assim, a situação teatral, por excelência, é aquela em que duas pessoas desejam o mesmo objeto porque cada uma indica esse objeto para a outra.

Tão logo o sujeito percebe que está sendo imitado, ele se sente reforçado em seu desejo, como a dizer: "Ah, então eu escolhi o objeto certo." Tão logo este homem vê uma mulher, ele se apaixona por ela, assim como eu." Portanto, ambos estamos certos, e mais do que nunca me convenço de que devo desejá-la. Nesse momento, então, nos tornamos inimigos.

05:19

Peter Robinson: Estou rindo porque, como os espectadores verão, é simples assim. De certo modo explica tudo.

Agora vou citar você, René. Diz respeito ao seu segundo "insight" fundamental: a violência e o sagrado.

"Se existe uma ordem normal nas sociedades, ela é fruto de uma crise anterior".

Explique!

05:44

René Girard: Deve ser o resultado de uma crise anterior porque há uma polarização das pessoas em torno dos objetos de desejo. E isto é válido até mesmo em relação à alimentação, à moradia, aos lugares em que você pode viver, e assim por diante.

Certamente as populações humanas do período pré-histórico concentravam-se nos mesmos lugares porque estes eram desejáveis, porque lá havia água, e assim por diante.

Elas estavam unidas pelo mesmo desejo, e separadas porque muitas vezes não havia o suficiente, como água, abrigo, comida, e, assim, começavam a lutar entre si.

Por isso, não acho certo dizer "como o homem é mal! Ele sempre entra em conflito com seus companheiros, incluindo as pessoas com quem tem um vínculo; inclusive, maior o vínculo, maiores são as brigas."

Eles agem assim porque ambos se voltam para o mesmo objeto.

Essas coisas são sempre escassas, e, mesmo quando são abundantes, você tende a confiar no seu modelo. Porque você o admira. Ele viu no objeto algo que eu não estou vendo. Por isso mesmo, devo segui-lo.

E isto ocorre nos dois sentidos. Quando aquele que primeiro imitou passa a ser imitado, ele se sente confirmado em seu desejo.

Em suma, as situações de conflito são onipresentes e surgem em qualquer lugar.

07:38

Peter Robinson: Parte II: O Mecanismo do Bode Expiatório

Então... digamos... Você descreveu as fontes básicas de conflito no mundo pré-histórico e agora temos os meus básicos de "resolver" os conflitos.

07:53

René Girard: Sim. Porque a pergunta é: como esses conflitos são resolvidos? Eles são geralmente resolvidos de forma coletiva.

08:09

Peter Robinson: A pergunta então é como a sociedade faz para continuar existindo, certo?

08:13

René Girard: As pessoas imitam as outras nos seus desejos. Mas as pessoas também imitam umas às outras em suas desavenças, como eu dizia. Portanto, quando há um conflito que é particularmente visível e óbvio. Haverá uma tendência de as pessoas as redor se colocarem ao lado do mais convincente e do mais forte, em detrimento do segundo. E uma vez que o segundo é preterido, depois será um terceiro e um quarto e assim por diante... Tudo isso obedece a uma lógica mimética.

Há algo que é necessário compreender: o motor é a imitação, imitação de amizade, imitação de desejo e imitação de conflitos.

Então sé é assim, não deveria haver sociedade humana. A sociedade seria inviável.

09:17

Peter Robinson: Entraria em conflito total o tempo inteiro.

09:20

René Girard: Conflito total o tempo inteiro. Mas quando surge uma crise assim generalizada logo aparece uma forma pela qual esse conflito é automaticamente substituído, resolvido.

É quando as pessoas imitam não só a escolha do oponente, mas também aquilo que elas sentem a respeito de tudo. É quando todos reagem juntos contra o mesmo oponente. Todos se sentem convencidos de que um é mais culpado do que o outro.

A noção de culpa tem um apelo na mentalidade coletiva. E tão logo isso acontece, uma vítima deve ser morta ou expulsa. Isto é o que eu, não eu, mas todos chamam de o "bode expiatório".

A expressão "bode expiatório" provém da Bíblia, da tradução de Tyndale para a língua inglesa. Na maioria das línguas europeias, diz-se "bode emissário", vítima "emissária": a vítima que é morta ou enviada para fora da coletividade.

É quando todos concordam que devem unir-se contra a vítima expiatória.

11:12

Peter Robinson: É este mecanismo que subjaz aos mitos catalogados pelo antropólogo James Frazer, não somente os mitos ocidentais e greco-romanos...

11:25

René Girard:  É exatamente isto que o James Frazer não enxerga, porque ele exclui o Ocidente. O Ocidente, para Fazer, é muito superior, muito mais inteligente que o resto da humanidade.

Frazer descobriu apenas os bodes expiatórios das sociedades arcaicas, primitivas, africanas.

11:47

Peter Robinson: Você crê que o padrão subjacente aos mitos - de todas as partes do mundo - do rei morto e ressuscitado refletem eventos verdadeiros nas sociedades pré-históricas?

11:58

René Girard: Com certeza.

12:00

Peter Robinson: Nós temos de definir o horizonte temporal do que estamos discutindo aqui. Você está falando, na verdade, que durante centenas de milhares de anos fomos civilizados pelos mitos.

12:15

René Girard: O meu trabalho não se preocupa em definir a data exata de quando isto começou. O que estou dizendo é que, em algum momento, as pessoas passaram a reconciliar-se para formar uma comunidade - comunidades permanentes. Opondo-se não a um líder diretamente mas a um "bode expiatório", que eles assassinam coletivamente e que unifica essa comunidade.

Por isso, se você estuda os mitos, verá que todos têm a mesma forma. Os mitos são sempre a história de um homem morto pela comunidade unida.

12:51

Peter Robinson: Vejamos o caso de Édipo, o mítico Rei de Tebas. A peste abate-se sobre Tebas, Édipo descobre que anos antes ele havia inconscientemente matado seu pai e casado com sua mãe. Ele fica horrorizado e por isso se cega.

13:04

René Girard: É a comunidade quem descobre isso!

13:07

Peter Robinson: Isso. Nós conhecemos o mito de Édipo. Explique-nos como...

13:10

René Girard: Édipo é morto, portanto a comunidade se une em torno dele. Porque, ao morrer, Édipo resolve o problema da dissolução da sociedade. Após sua morte, as pessoas vêem que não têm mais um inimigo comum. E há um omento em que eles dizem: "este homem nos dividiu, mas com o objeto de nos reconciliar. Portante ele é um Deus." Alguém que conduz a uma nova forma de unidade.

Deveriam ter medo dele, mas no fundo ele é fundamentalmente "bom": ele é um Deus.

13:58

Peter Robinson: Parte III: O "mito" que aconteceu

A crucificação de jesus de Nazaré.

Evangelho de Lucas, capítulo 23: "O centurião, vendo o que acontecera, glorificava a Deus, dizendo: "Realmente, este homem era um justo!" E as pessoas batiam no próprio peito."

14:19

René Girard: A sua citação é muito acertada, porque ela já indica o que o mito não pode dizer. O mito nunca percebe que a vítima é inocente.

14:32

Peter Robinson:  Édipo realmente matou o pai e a mãe. De fato, ele era culpado.

14:36

René Girard: Exatamente! E os primeiros intérpretes do mito o levaram muito a sério porque viam na violência o seu principal elemento, e por isso acreditaram que o homem condenado à morte era de fato um homicida.

Na realidade, ele é um homicida imaginário: um bode expiatório.

14:57

Peter Robinson: Mas a comunidade acreditou na culpa dele.

15:00

René Girard: Sim. E a comunidade queria repetir este ciclos de violência, achando que era Deus quem lhes ensinava a repeti-lo. Por isso, inventaram o sacrifício.

15:16

Peter Robinson: Então, quando Frazer no "O Ramo de Ouro" sugere que o Cristianismo - ele na verdade tem um grande choque, no fim do século XIX, assim como Darwin, - ele sugere que o Cristianismo não passaria d mais um mito seguindo o padrão do deus que morre e ressuscita.

Frazer e muitos intelectuais hoje em dia pensam assim. Como você responde a esta visão?

15:42

René Girard: É muito fácil. Eu mostro que Frazer está correto ao apontar as semelhanças entre o mito e o Cristianismo. Em ambos os casos, a vítima é morta pela comunidade e se torna um deus - ou já é Deus, como Jesus Cristo - da comunidade.

O que Frazer não percebe, e que de tão elementar bastaria para convencer a todos que concordam com ele, se fossem honestos, é que o Cristianismo é muito diferente da mitologia sem deixar de narrar o mesmo drama. É a mesma situação. Mas enquanto o Cristianismo nos ensina que Cristo é inocente, os demais mitos dizem que a vítima é culpada.

A vítima é um deus, mas um deus passível de culpa, um deus perigoso, que pode ser bom para você em circunstâncias nem sempre fáceis de entender mas que também pode praticar o mal - o que não é o caso de Cristo.

Simples assim: o Cristianismo afirma que Cristo é inocente.

E as pessoas não percebem que é a primeira vez, na história da humanidade, que uma narrativa apresenta a vítima, não como falsamente culpado, mas como inocente, enviado pelo próprio Deus.

Se Deus permite o sacrifício do bode expiatório, é porque Ele quer que a humanidade continue a existir. Mas é claro que Cristo é diferente de qualquer outro bode expiatório. Ele é o filho de Deus, mas não O compreendem. Ele vive exatamente a mesma situação dos heróis míticos. Porém, Ele é um herói mítico inocente.

17:51

Peter Robinson: René, agora uma questão sobre soteriologia, se é que estou pronunciando corretamente. Sobre a teologia da Cruz. O que muda quanto este Deus-Homem inocente morre na Cruz? Como este fato influi na compreensão do homem? Por que se trata de um acontecimento salvífico?

18:13

René Girard: Bem, se lermos a realidade mitológica como acabei de fazer, nós vamos ver que há algo no mito que não é puramente humano. Nós oferecemos todas essas vítimas, que consideramos culpadas. No caso do Cristianismo, há uns poucos discípulos que dizem "não, ele não é culpado", e que afirmam até o fim que a sua inocência, independente do que as pessoas dizem dele.

Portanto, eles falam a verdade - uma verdade que, antes de ser religiosa, é antropológica, mas que tem o mesmo sentido.

18:57

Peter Robinson: Quer dizer que a morte de Cristo na Cruz liberta a humanidade desse impulso profundo, secreto e inevitável que alimente o ciclo do bode expiatório.

19:14

René Girard: Sim. Certamente é isto que o Cristianismo afirma, ou seja, que é a única religião verdadeira, porque diz a verdade sobre o homem e sobre Deus.

Contudo, poucas pessoas levam a sério esta afirmação, como bem sabemos.

19:32

Peter Robinson: Mas por quê?

Pois, como você mesmo mostrou, com base me inúmeros fatos, é óbvio que o Cristianismo é diferente, e mesmo assim eles não percebem.

19:43

René Girard: Porque não querem perceber. Mas você sabe disso tanto quanto eu, nós simplesmente temos de perceber o que eles não percebem.

Veja, os próprios Cristãos não ousam reconhecer essas similaridades. Pois são por demais tímidos.

20:00

Peter Robinson: Eles têm receio de que o Cristianismo seja só mais um mito.

20:04

René Girard: Sim. Os Cristãos recusam-se a ver no Cristianismo o mesmo drama das narrativas míticas. A situação é a mesma. Porém no mesmo momento em que o Cristianismo revela a verdade, não há mais mito! Cristianismo destrói a mitologia.

20:18

Peter Robinson: Parte IV: René Girard e o Mundo Moderno

Em seu livro mais recente "Arrematar Clausewitz", publicado nos EUA com o título "Lutando até o fim", você diz:

"A história, pode-se dizer, é um teste para a humanidade. Mas nós sabemos bem que a humanidade está sendo reprovada neste teste. Explique:

20:39

René Girard: A humanidade está sendo reprovada no teste porque nós temos a verdade, a realidade do Cristianismo está aí. Essa verdade foi revelada já mais de 2000 anos e, em vez de avanças e difundir-se, hoje em dia o Cristianismo está minguando e tornando-se cada vez mais impopular. E o Cristianismo é acusado de muitas coisas e ironicamente o próprio Cristianismo é vítima do bode expiatório, que ele revelou.

21:17

Peter Robinson: Hoje em dia, temos Christopher Hitchens dizendo que o Cristianismo é o culpado de toda a sorte de males - eu não pretendo ridicularizar os argumentos do Hitchens - mas ele ressalta as guerras religiosas e você diz que isso não é Cristianismo. Então o que é?

21:38

René Girard: Sim. É um esforço de restauração da prosperidade mítica, que não percebe a si mesmo como deveria.

21:51

Peter Robinson: Unir por meio de um antagonismo comum e cometer atos de violência contra as pessoas. O que vemos nas guerras religiosas e no Comunismo é o ressurgimento dos padrões primitivos.

22:07

René Girard: Sim. O que vemos nas sociedades em geral são as pessoas se unindo em torno de vítimas, mas para isso precisam continuar acreditando que essas vítimas são realmente culpadas. E a verdade é que elas não são.

Em outras palavras, o Cristianismo é o "mito" que decifra todos os mitos. As pessoas dizem que faço antropologia ou que faço mitologia. Eu respondo: Não. Eu mostro que ler corretamente a mitologia e possuir a verdadeira antropologia são uma e a mesma coisa.

22:46

Peter Robinson: Outra vez cito "Lutando até o fim":

"Pessoalmente tenho a impressão de que o Islã usa a Bíblia como suporte para reconstruir uma religião arcaica. Enquanto o Cristianismo elimina o sacrifício onde quer que ele ganhe apoio, o Islã parece situar a si mesmo no momento anterior àquela rejeição."

23:09

René Girard: Sim. Islã é um grande problema para o Cristianismo. Pois ele vem após o Cristianismo e é inteligente o suficiente, religioso o suficiente para usar certos aspectos do Cristianismo que o tornam mais digno de crédito do que as religiões arcaicas.

Porém é fundamental compreender que não é a mesma mensagem. Parece ser, mas não é a mesma mensagem. Porque a paz e a recusa da violência Cristãs não estão presentes no Islã.

23:52

Peter Robinson: Você também afirma no livro que o terrorismo é uma novidade e não conforme em relação ao Islã tradicional.

23:59

René Girard: Sim.

24:02

Peter Robinson: De onde vem o terrorismo e qual a forma correta de entendê-lo?

24:05

René Girard: Eu não sei.

24:05

Peter Robinson: Estamos na TV. Invente uma resposta.

24:14

René Girard: Não. Eu não quero inventar uma resposta. Esta questão é muita séria. Porque estamos falando de milhões e milhões de pessoas.

24:20

Peter Robinson: Claro. Claro.

24:24

René Girard: E essas pessoas são honestas. Como Cristão, eu os vejo como Cristãos em potencial. Nós queremos converter uns aos outros e isto é perfeitamente normal. Nós queremos que todos os muçulmanos convertam-se, e eles desejam que todos os Cristãos se tornem muçulmanos.

24:45

Peter Robinson: Ainda no livro "Lutando até o Fim", você diz que o mundo moderno está numa situação peculiar: o padrão arcaico já não mais funciona após a revelação Cristã. É impossível volta a ser um pagão autêntico.

Não se pode voltar atrás, a revelação já aconteceu.

Portanto, não funciona mais, já não tem o mesmo poder de unidade ritual, no qual as pessoas acreditavam. Mas, ao mesmo tempo, temos hoje o progresso tecnológico tornando o mecanismo do bode expiatório cada vez mais perigoso.

25:19

René Girard: Sim, basta dizer que o homem tornou-se capaz de destruir o seu próprio mundo, de destruir a atmosfera e torná-la inviável para a vida. Eu levo isto muito a sério. Hoje vivemos num período estranho, porque os textos apocalípticos - aliás, o grande texto apocalíptico para mim não é aquele intitulado "Apocalipse de São João", para mim são os textos apocalípticos que estão situados no fim dos Evangelhos Sinóticos, especialmente o de Lucas.

26:14

Peter Robinson: A leitura do último domingo: "o fim do mundo virá, mas não vos compete saber quando será".

26:22

René Girard: Muito tempo atrás, eu me recordo, antes mesmo da invenção da bomba atômica, os sacerdotes nas igrejas já falavam desse texto no último dia do ano litúrgico, ou seja, no último dia do Tempo Comum após o Pentecostes - que foi semana passada - e no primeiro dia do Advento, que é outro dia apocalíptico.

Estes textos eram lidos, e eu lembro de serem a única coisa que me impressionou sobremaneira.

E, de alguma forma, a inspiração de todo o meu trabalho reside aí. Estou falando destes textos o tempo todo.

27:12

Peter Robinson: Última citação do "Lutando até o fim":

"De alguma forma os Evangelhos e as Escrituras prevendo que a humanidade seria continuamente reprovada no teste da história até o dia em que de defrontará com o fato escatológico: literalmente o fim do mundo."

O que você acha da era atual? Estamos em tempo de ser testados? Estamos no tempo do julgamento?

27:32

René Girard: Bem, olhe para os textos apocalípticos do Evangelho: uma coisa muito característica é a mistura do humano e do natural. Por este motivo, certas pessoas acham que não são textos sérios nem científicos.

Mas olhe para o tempo em que vivemos: se tem um novo furação em Nova Orleans, ele tem origem apenas natural ou tem a ajuda da mão do homem?

Portanto, em minha opinião, estar no tempo apocalíptico significa exatamente isto.

O tempo em que não conseguimos mais distinguir o que é causado pela natureza e o que é causado pelo homem. Se é o homem que está colaborando com as forças apocalípticas.

28:24

Peter Robinson: Parte V: Trajetória Pessoal do René Girard

Há uma citação atribuída a você segundo a qual você teria passado por duas conversões. A primeira delas seria intelectual, que ocorreu quando, assumo eu, lendo o Ramo de Ouro, você concluiu que o Cristianismo era diferente. Estou correto?

28:47

René Girard: Sim, mas isso não é necessariamente Cristão. Foi o encontro desses textos com os Evangelhos que me convenceu.

Quando me dei conta dessa mistura: haverá o mar e declínio das ondas, os homens lutando entre si, cidades contra cidades etc... Existe sempre esta simetria, é o que chamo as "duplas", as situações básicas de conflito.

Quando a gente se dá conta de que essa coisa dupla é uma só.

29:31

Peter Robinson: Agora eu queria fazer uma pergunta mais descontraída. Quando eu era adolescente, os textos apocalíticos também me aterrorizavam. Eu me lembro de um pároco tentando mostrar como a bomba de hidrogênio já estava prevista no livro do Apocalipse.

29:53

René Girard: Mas as peesoas querem se sentir amedrontadas. Hoje em dia, as pessoas não procuram filmes para ficar aterrorizadas? E o único temor que eles recusam é justamente o único temor bom, que é a crença em que deve existir um Deus, que está no comando, que pode recompensar ou punir.

30:14

Peter Robinson: Tenho aqui uma pergunta de um telespectador: René Girard acredita que é possível mudar o curso da maré?

30:22

René Girard: Sim. Agindo como Cristãos.

30:27

Peter Robinson: René, para concluir a entrevista, eu pediria que você fosse meu guia aqui sobre estes textos e me ajude ter uma leitura bem Girardiana. Então estou pedindo para comentá-los.

Evangelho de Lucas, capítulo 1, 28:

"O anjo, aproximando-se dela, disse: "Alegre-se, agraciada! O Senhor está com você!"
Maria ficou perturbada com essas palavras, pensando no que poderia significar esta saudação.
Mas o anjo lhe disse: "Não tenha medo, Maria; você foi agraciada por Deus!"

O que está mulher está fazendo na mitologia Cristã?

31:05

René Girard: Bem, essa mulher é parte, é uma parte muito importante. Maria é a mão da criança que é Cristo - o qual é o Filho de Deus e presença de Deus sobre esta terra. Por isso ela é tão importante.

Protestantes e Católicos têm interpretações diferentes sobre Maria, mas eu não acho isso importante.

O que importa é perceber que religiosamente ela justifica como a história é tanto humana quanto divina. E que as consequências são, de algum modo, sempre manifestadas por Deus.

32:11

Peter Robinson: Não há teatro, nem melodrama. Há apenas uma simples menina que é uma testemunha assustada.

32:18

René Girard: Correto.

32:23

Peter Robinson: Lucas, capítulo 2:

"Naqueles dias, César Augusto publicou um decreto ordenando o recenseamento de todo o império romano.
Este foi o primeiro recenseamento feito quando Quirino era governador da Síria.
E todos iam para a sua cidade natal, a fim de alistar-se.
Assim, José também foi da cidade de Nazaré da Galileia para a Judeia, para Belém, cidade de Davi, porque pertencia à casa e à linhagem de Davi.
Ele foi a fim de alistar-se, com Maria, que lhe estava prometida em casamento e esperava um filho.
Enquanto estavam lá, chegou o tempo de nascer o bebê,
e ela deu à luz o seu primogênito. Envolveu-o em panos e o colocou numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na hospedaria."

Esta é uma aparição bastante estranha para um Deus que morre e ressuscita!

32:50

René Girard: Sem dúvida. Trata-se da prova do que realmente estava acontecendo no plano histórico, no Império Romano e no resto do mundo. No primeiro e segundo século após Cristo.

33:14

Peter Robinson: É como se a narrativa começasse com uma manchete do New York Times: "Decreto de César Augusto". E então o gospel imediatamente nos mostra o que realmente importa: uma verdade humana ordinária e escondida, acontecendo numa região sem nenhuma importância.

33:27

René Girard: Sim. Mas acontecendo em um só lugar, num lugar único, que tem de ser descoberto! Que ninguém levianamente pode dizer: "já sei, está ali, não tem importância." Absolutamente não é assim.

É o nosso destino e o dever de nossas vidas buscar a Verdade, a qual está escondida do ponto de vista do Império Romano.

33:56

Peter Robinson: Última passagem, Lucas, capítulo 2:

"Havia pastores que estavam nos campos próximos e durante a noite tomavam conta dos seus rebanhos.
E aconteceu que um anjo do Senhor apareceu-lhes e a glória do Senhor resplandeceu ao redor deles; e ficaram aterrorizados.
Mas o anjo lhes disse: "Não tenham medo. Estou trazendo boas-novas de grande alegria para vocês, que são para todo o povo:
Hoje, na cidade de Davi, nasceu o Salvador, que é Cristo, o Senhor.
Isto servirá de sinal para vocês: encontrarão o bebê envolto em panos e deitado numa manjedoura".
De repente, uma grande multidão do exército celestial apareceu com o anjo, louvando a Deus e dizendo:
"Glória a Deus nas alturas, e paz na terra aos homens aos quais ele concede o seu favor".

René, você se lembra da Segunda Guerra Mundial, você viveu em Paris durante a ocupação Nazista. 50 milhões de mortos, o holocausto, dezenas de milhões de mortos pelo Comunismo. Tudo isto durante a tua vida. Como pode fazer sentido "paz na terra aos homens de boa vontade?"

34:43

René Girard: Bem o primeiro sentido é que a maior parte dos homens - especialmente a maior parte dos poderosos - não estavam cheios de paz nem de boas intenções.

A vida humana é essencialmente um drama.

Talvez uma coisa que as Igrejas não enfatizem suficientemente é que os seres humanos gostam do drama. Os seres humanos gostam de fazer parte da grande luta entre o bem e o mal.

O que este texto diz é que, à sua maneira, cada um faz parte desta luta. O que para mim é uma mensagem fonte muito forte e e cheia de esperança.

35:39

Peter Robinson: O Cristão comum jamais lerá toda a obra do René Girard. Você poderia resumi-la em poucas palavras?

35:50

René Girard: Isso realmente não tem importância alguma. Pois qualquer Cristão pode ter intuições muito mais profundas do que as minhas.

Ele deve confiar que ele é uma pessoa importante para Deus e que seu entendimento sobre a realidade como uma história religiosa é algo que agrada a Deus.

36:19

Peter Robinson: René Girard, muito abrigado e Feliz Natal!

36:19

René Girard: Feliz Natal!