segunda-feira, 7 de novembro de 2022

Religião e as origens do Socialismo

Excerto do Capítulo 8 do livro "Religião e a Imaginação Política"


O que veio a ser chamado de "socialismo" não se originou nem como uma nova teoria econômica nem como uma preocupação sobre a situação dos trabalhadores. [..] mas como um substituto da Igreja Cristã e todas as outras religiões. Portanto, a ambição original e mais duradoura do "socialismo" não era deslocar o Estado, mas a Igreja.

https://www.cambridge.org/core/books/abs/religion-and-the-political-imagination/religion-and-the-origins-of-socialism/7F5EABFED9D7A98ACE6478D2E3E2C035


O socialismo raramente, se é que alguma vez, foi tratado como parte da história religiosa da Europa e do resto do mundo em geral. Durante a maior parte do século XX, historiadores da política e da intelectualidade, particularmente aqueles que escreveram sobre a era moderna, tenderam a deixar o estudo da religião para sociólogos e psicólogos. Diante das críticas filosóficas, do avanço científico e das mudanças sociais em larga escala, sempre foi suposto que as crenças religiosas estavam recuando.

O socialismo, pensava-se, pertencia aquele conjunto de idéias modernas que tomaram o lugar das concepções religiosas do mundo. Foi considerado um movimento "social" e essencialmente secular, a expressão da classe trabalhadora urbana e industrial e o resultado do crescimento da consciência de classe.

Este capítulo relata o início do socialismo por volta de 1800 até as diferentes manifestações da crise religiosa em toda a Europa. O 'socialismo' em suas diferentes variedades se apresentou como o substituto universal para as velhas religiões, construído sobre uma nova cosmologia, baseada na "ciência" e num novo código de ética. [...] 

É claro que o grau ao qual o socialismo se associou com a construção destas novas cosmologias alternativas dependeu da situação política de cada local. Tal desenvolvimento foi mínimo na Grã-Bretanha após 1848, onde não houve uma revolução, mas uma incorporação crescente da classe trabalhadora dentro da política e uma mudança na atitude da igreja em relação à "questão social". 

Tampouco uma cosmologia distintamente socialista se tornou proeminente na França pós-1848. A hostilidade contra a Igreja Católica, muito forte em Paris, Lyon e partes do sul, foi em grande parte articulada num republicanismo democrático de alguma forma cristianizada, ou num positivismo compartilhado com os liberais radicais da República pós-1870.

Em contraste, houve um desenvolvimento impressionante de um credo socialista alternativo e cosmo-lógico na Alemanha imperial pós-1870, onde católicos foram tratados por socialistas como Bismark como Reichsfeinde, ou seja, inimigos do Estado. Ali, os socialdemocratas, embora ostensivamente
mantendo que a religião era um assunto privado, proclamaram uma cosmologia evolutiva alternativa, delineada no best-seller da Bebel: "A mulher e o Socialismo" de 1879.

Finalmente, o desenvolvimento mais completo de um cosmologia e teoria alternativa do homem ocorreu na União Soviética depois de 1917. Rigorosamente policiados pelo Partido Comunista entre os anos 1920 e 1950, produtos do "materialismo dialético" como "O Culto do Ser Supremo" de 1794 serviu para fornecer uma identidade distinta a um novo regime teocrático obcecado por inimigos internos e cercado por potências hostis até seu colapso final no final dos anos 80.

Socialismo

O "socialismo", que entrou na linguagem comum na década de 1830, foi universalmente reconhecido como iniciado do trabalho de três profetas fundadores: 
  • Henri de Saint-Simon e Charles Fourier na França; 
  • Robert Owen na Grã-Bretanha. 
A interpretação padrão geralmente se supõe que o nascimento do socialismo estava ligado ao despertar da consciência de um nova classe trabalhadora criada pela 'revolução industrial'.

Este argumento foi apresentado 
pela primeira vez claramente 
nos escritos de Friedrich Engels. 
Ver "A condição da Inglaterra".

Tal interpretação começou com Engels, para quem a história do socialismo era uma transição das teorias 'utópicas' para as 'científicas'. O 'utopismo' era o inevitável custo pago por idéias que apareceram antes de seu tempo - à frente, ou seja, do aspecto histórico do novo proletariado. 

Assim, o escritos de Saint-Simon e Fourier foram resumidos numa pequena seleção de idéias sugestivas e pensamentos proféticos. Todo o resto foi descartada como fantasia inevitável, que "pertencia inteiramente ao passado". 
Ver 'Socialismo: utópico e científico', 

Ainda nos anos 1960 interpretações históricas de G. D. H. Cole, Jacques Droz e George Lichtheim ainda foram em grande parte concebidos dentro desta estrutura de Engels.

Esta leitura altamente enviesada fez com que todo o fenômeno do início socialismo se tornasse historicamente ininteligível, ou mesmo absurdo. Sua verdadeira gênese pertenceu às profundas conseqüências do Jacobinismo e do Terror na França e, mais amplamente, às controvérsias religiosas e filosóficas da Europa do final do século XVIII.

O que veio a ser chamado de "socialismo" não se originou nem como uma nova teoria econômica nem como uma preocupação sobre a situação dos trabalhadores. Na França, o socialismo começou como uma tentativa de responder a pergunta mais debatida após a queda de Robespierre em 1794: como pôr fim à Revolução Francesa?

Suposições posteriores sobre a natureza da política socialista também obscureceram o que era mais distinto sobre a resposta "socialista" a esta pergunta. A preocupação
  • não era sobre a falta de igualdade, mas sobre dos seus excessos; 
  • não era sobre a busca da virtude, mas sobre como alcançar harmonia social;
  • não era sobre a soberania popular, mas sobre o reinado da verdade;
  • não era sobre a extensão da política, mas sobre sua subordinação;
  • não era sobre a extensão da revolução ou a consolidação da república, mas sobre a fundação de uma nova ordem mundial.
Essa nova ordem mundial seria baseada num novo credo ou num novo "poder espiritual" (pouvoir spirituel), não mais baseado nas crenças Católicas, consideradas infundadas e ultrapassadas, mas nas verdades científicas recém-descobertas sobre a natureza, sobre a humanidade e sobre a ordem cósmica.

Ou seja, tanto na Inglaterra quanto na França, socialismo foi concebido como um substituto da Igreja Cristã e todas as outras religiões. Portanto, a ambição original e mais duradoura do "socialismo" não era deslocar o Estado, mas a igreja.

Vamos portanto começar com um breve "resumo" das reivindicações originais feitas por cada um dos
os fundadores do chamado "socialismo utópico".

Saint-Simon e Fourier


Saint-Simon, que primeiro expôs sua agenda na obra "Cartas de um habitante de Genebra" (1802), começou com uma proposta aparentemente bizarra: criar uma organização que viveria em cima do túmulo de Newton; cada participante desta organização nominaria três cientistas ou artistas para fazer parte do Conselho de Newton, que supervisionaria o progresso do mundo. 

O convite seria enviado aos "cientistas", aos "donos de propriedade" e "ao terceiro grupo que se une sob a palavra igualdade, e engloba o resto da humanidade". Bastaria que estas classes rivais concordassem em ignorar os seus interesses particulares e se unissem em torno do interesse que têm em comum - o progresso da ciência. E assim que todos obedecessem o governo espiritual dos cientistas, o conflito social cessaria de existir para sempre.

Seguiu-se então um sonho, no qual Roma abandonou suas pretensões religiosas e, em vez disso, uma humanidade pacífica e ordeira venerava Newton, sob a égide do comitê de vinte e um "gênios", que presidia sobre sua tumba.

Todas as religiões anteriores, Saint-Simon afirmou, haviam perdido a chance de perseguir o ponto essencial, que era a "criação de um sistema condutor da inteligência humana ao longo do mais curto caminho para algum ponto próximo desta minha visão divina".

Além disso, para Saint-Simon, as religiões não seguiram o caminho científico, e não tinham visto que em vez da castidade, da continência e de todas as outras obrigatoriedades religiosas sem sentido; a humanidade só precisava obedecer a um único mandamento: "todos os homens devem trabalhar".

Depois de 1815 na versão reformulada da sua proposta, agora prudentemente renomeada "O Novo Cristianismo", Saint-Simon proclamou que a religião poderia ser destilada em duas mensagens: 
  • "os homens devem tratar uns aos outros como irmãos";
  • "a religião deve direcionar a sociedade para o grande objetivo de o mais rápido possível aprimorar a vida da classe mais pobre". 
"Estou convencido", concluiu ele, "de que eu mesmo estou cumprindo uma missão divina ao convocar
povos e reis para o verdadeiro espírito do cristianismo".

[Este aprimoramento era compreendido por Saint-Simon dentro da sua teoria que] as paixões tão desprezadas pelos "filósofos", com seu odioso culto à virtude e à igualdade, nos foram dados por Deus. É a repressão das paixões que explica a presente "incoerência" da civilização. 

Saint-Simon, assim como Fourier considerava a Igreja Católica "decrépita" e imaginava a necessidade de "fundar uma nova religião", "uma religião da voluptuosidade" que "atiçaria os desejos e paixões [dos homens] assim como as mitologias atiçavam os pintores". 

Saint-Simon acreditava que "a atração move tanto as paixões quanto os planetas", e assim concluiu: "as atrações e as propriedades dos animais, dos vegetais e dos minerais são talvez coordenadas de acordo com o mesmo plano que coordena os homens e as estrelas". Daí o título do seu livro: "A teoria dos quatro movimentos".

Fourier também atribuiu a si mesmo um status [profético]. Como ele escreveu mais tarde, 'João Batista foi o profeta precursor de Cristo. Eu sou o profeta "pós-cursor", anunciado por Cristo e que vai completar o seu trabalho de reabilitação dos homens.