O que veio a ser chamado de "socialismo" não se originou nem como uma nova teoria econômica nem como uma preocupação sobre a situação dos trabalhadores. [..] mas como um substituto da Igreja Cristã e todas as outras religiões. Portanto, a ambição original e mais duradoura do "socialismo" não era deslocar o Estado, mas a Igreja.
https://www.cambridge.org/core/books/abs/religion-and-the-political-imagination/religion-and-the-origins-of-socialism/7F5EABFED9D7A98ACE6478D2E3E2C035
O socialismo raramente, se é que alguma vez, foi tratado como parte da história religiosa da Europa e do resto do mundo em geral. Durante a maior parte do século XX, historiadores da política e da intelectualidade, particularmente aqueles que escreveram sobre a era moderna, tenderam a deixar o estudo da religião para sociólogos e psicólogos. Diante das críticas filosóficas, do avanço científico e das mudanças sociais em larga escala, sempre foi suposto que as crenças religiosas estavam recuando.
O socialismo, pensava-se, pertencia aquele conjunto de idéias modernas que tomaram o lugar das concepções religiosas do mundo. Foi considerado um movimento "social" e essencialmente secular, a expressão da classe trabalhadora urbana e industrial e o resultado do crescimento da consciência de classe.
Este capítulo relata o início do socialismo por volta de 1800 até as diferentes manifestações da crise religiosa em toda a Europa. O 'socialismo' em suas diferentes variedades se apresentou como o substituto universal para as velhas religiões, construído sobre uma nova cosmologia, baseada na "ciência" e num novo código de ética. [...]
É claro que o grau ao qual o socialismo se associou com a construção destas novas cosmologias alternativas dependeu da situação política de cada local. Tal desenvolvimento foi mínimo na Grã-Bretanha após 1848, onde não houve uma revolução, mas uma incorporação crescente da classe trabalhadora dentro da política e uma mudança na atitude da igreja em relação à "questão social".
Tampouco uma cosmologia distintamente socialista se tornou proeminente na França pós-1848. A hostilidade contra a Igreja Católica, muito forte em Paris, Lyon e partes do sul, foi em grande parte articulada num republicanismo democrático de alguma forma cristianizada, ou num positivismo compartilhado com os liberais radicais da República pós-1870.
Em contraste, houve um desenvolvimento impressionante de um credo socialista alternativo e cosmo-lógico na Alemanha imperial pós-1870, onde católicos foram tratados por socialistas como Bismark como Reichsfeinde, ou seja, inimigos do Estado. Ali, os socialdemocratas, embora ostensivamente
mantendo que a religião era um assunto privado, proclamaram uma cosmologia evolutiva alternativa, delineada no best-seller da Bebel: "A mulher e o Socialismo" de 1879.
Finalmente, o desenvolvimento mais completo de um cosmologia e teoria alternativa do homem ocorreu na União Soviética depois de 1917. Rigorosamente policiados pelo Partido Comunista entre os anos 1920 e 1950, produtos do "materialismo dialético" como "O Culto do Ser Supremo" de 1794 serviu para fornecer uma identidade distinta a um novo regime teocrático obcecado por inimigos internos e cercado por potências hostis até seu colapso final no final dos anos 80.
Socialismo
O "socialismo", que entrou na linguagem comum na década de 1830, foi universalmente reconhecido como iniciado do trabalho de três profetas fundadores:
- Henri de Saint-Simon e Charles Fourier na França;
- Robert Owen na Grã-Bretanha.
Este argumento foi apresentado
pela primeira vez claramente
nos escritos de Friedrich Engels.
Ver "A condição da Inglaterra".
Tal interpretação começou com Engels, para quem a história do socialismo era uma transição das teorias 'utópicas' para as 'científicas'. O 'utopismo' era o inevitável custo pago por idéias que apareceram antes de seu tempo - à frente, ou seja, do aspecto histórico do novo proletariado.
Assim, o escritos de Saint-Simon e Fourier foram resumidos numa pequena seleção de idéias sugestivas e pensamentos proféticos. Todo o resto foi descartada como fantasia inevitável, que "pertencia inteiramente ao passado".
Ver 'Socialismo: utópico e científico',
Ainda nos anos 1960 interpretações históricas de G. D. H. Cole, Jacques Droz e George Lichtheim ainda foram em grande parte concebidos dentro desta estrutura de Engels.
Esta leitura altamente enviesada fez com que todo o fenômeno do início socialismo se tornasse historicamente ininteligível, ou mesmo absurdo. Sua verdadeira gênese pertenceu às profundas conseqüências do Jacobinismo e do Terror na França e, mais amplamente, às controvérsias religiosas e filosóficas da Europa do final do século XVIII.
O que veio a ser chamado de "socialismo" não se originou nem como uma nova teoria econômica nem como uma preocupação sobre a situação dos trabalhadores. Na França, o socialismo começou como uma tentativa de responder a pergunta mais debatida após a queda de Robespierre em 1794: como pôr fim à Revolução Francesa?
Suposições posteriores sobre a natureza da política socialista também obscureceram o que era mais distinto sobre a resposta "socialista" a esta pergunta. A preocupação
- não era sobre a falta de igualdade, mas sobre dos seus excessos;
- não era sobre a busca da virtude, mas sobre como alcançar harmonia social;
- não era sobre a soberania popular, mas sobre o reinado da verdade;
- não era sobre a extensão da política, mas sobre sua subordinação;
- não era sobre a extensão da revolução ou a consolidação da república, mas sobre a fundação de uma nova ordem mundial.
Essa nova ordem mundial seria baseada num novo credo ou num novo "poder espiritual" (pouvoir spirituel), não mais baseado nas crenças Católicas, consideradas infundadas e ultrapassadas, mas nas verdades científicas recém-descobertas sobre a natureza, sobre a humanidade e sobre a ordem cósmica.
Ou seja, tanto na Inglaterra quanto na França, socialismo foi concebido como um substituto da Igreja Cristã e todas as outras religiões. Portanto, a ambição original e mais duradoura do "socialismo" não era deslocar o Estado, mas a igreja.
Vamos portanto começar com um breve "resumo" das reivindicações originais feitas por cada um dos
os fundadores do chamado "socialismo utópico".
Saint-Simon e Fourier
Saint-Simon, que primeiro expôs sua agenda na obra "Cartas de um habitante de Genebra" (1802), começou com uma proposta aparentemente bizarra: criar uma organização que viveria em cima do túmulo de Newton; cada participante desta organização nominaria três cientistas ou artistas para fazer parte do Conselho de Newton, que supervisionaria o progresso do mundo.
O convite seria enviado aos "cientistas", aos "donos de propriedade" e "ao terceiro grupo que se une sob a palavra igualdade, e engloba o resto da humanidade". Bastaria que estas classes rivais concordassem em ignorar os seus interesses particulares e se unissem em torno do interesse que têm em comum - o progresso da ciência. E assim que todos obedecessem o governo espiritual dos cientistas, o conflito social cessaria de existir para sempre.
Seguiu-se então um sonho, no qual Roma abandonou suas pretensões religiosas e, em vez disso, uma humanidade pacífica e ordeira venerava Newton, sob a égide do comitê de vinte e um "gênios", que presidia sobre sua tumba.
Todas as religiões anteriores, Saint-Simon afirmou, haviam perdido a chance de perseguir o ponto essencial, que era a "criação de um sistema condutor da inteligência humana ao longo do mais curto caminho para algum ponto próximo desta minha visão divina".
Além disso, para Saint-Simon, as religiões não seguiram o caminho científico, e não tinham visto que em vez da castidade, da continência e de todas as outras obrigatoriedades religiosas sem sentido; a humanidade só precisava obedecer a um único mandamento: "todos os homens devem trabalhar".
Depois de 1815 na versão reformulada da sua proposta, agora prudentemente renomeada "O Novo Cristianismo", Saint-Simon proclamou que a religião poderia ser destilada em duas mensagens:
- "os homens devem tratar uns aos outros como irmãos";
- "a religião deve direcionar a sociedade para o grande objetivo de o mais rápido possível aprimorar a vida da classe mais pobre".
povos e reis para o verdadeiro espírito do cristianismo".
[Este aprimoramento era compreendido por Saint-Simon dentro da sua teoria que] as paixões tão desprezadas pelos "filósofos", com seu odioso culto à virtude e à igualdade, nos foram dados por Deus. É a repressão das paixões que explica a presente "incoerência" da civilização.
Saint-Simon, assim como Fourier considerava a Igreja Católica "decrépita" e imaginava a necessidade de "fundar uma nova religião", "uma religião da voluptuosidade" que "atiçaria os desejos e paixões [dos homens] assim como as mitologias atiçavam os pintores".
Saint-Simon acreditava que "a atração move tanto as paixões quanto os planetas", e assim concluiu: "as atrações e as propriedades dos animais, dos vegetais e dos minerais são talvez coordenadas de acordo com o mesmo plano que coordena os homens e as estrelas". Daí o título do seu livro: "A teoria dos quatro movimentos".
Fourier também atribuiu a si mesmo um status [profético]. Como ele escreveu mais tarde, 'João Batista foi o profeta precursor de Cristo. Eu sou o profeta "pós-cursor", anunciado por Cristo e que vai completar o seu trabalho de reabilitação dos homens.